Paradoxo.

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«(...) É por isso que eu não fico satisfeito em sentir o que eu sinto se o que eu sinto fica só no meu peito.»

domingo, 19 de abril de 2009

" O que escrevo exige a minha morte. Confundi a minha vida com o que escrevia. Confundi-me demasiado a mim mesmo. Não só escrevia o que me acontecia, como me acontecia o que escrevia. É verdade, embora pareca mentira. Sim, a verdade e a mentira começaram a tornar-sepouco a pouco indistintas, como um sim e um não. No principio até brincava com isso. Depois vieram os primeiros arrepios e o susto. Se soubesse não me tinha metido nisto. É uma frase que me vem a cabeça insistentemente. Tento afasta-la e ela volta, não me larga.

Foi contigo que começei, é contigo que quero acabar. Parece justo assim. Pelo menos um pouco de justiça. Como se fosse preciso. E tudo começou por ser uma simples história, uma história que ecreviamos os dois a volta de uma mesa, numa mesma maquina de escrever.


Não era preciso que fosse assim, mas não pôde ser de outra maneira. Eu amava-te e tu amavas-me, mas era com um amor diferente. Mal se tocavam, os amores. Era uma história triste a que escreviamos, mais triste ainda do que a que viviamos. Repito: Tudo começou por ser uma simples brincadeira, uma maneira de passar o tempo quando ele custava a passar. E agora deixou de haver tempo, assim de repente. Pelo menos para mim. Para ti não sei. Foi há tantos anos. Há anos que não nos vemos.


Cada vez que pergunto por ti- e são raras as vezes- respondem-me com uma historia diferente. Que fugiste, que não fugiste nada, que continuas onde sempre estivest, sobre um monte de palavras mortas. A ultima vez que falamos foi pelo telefone. Perguntei se estavas bem e tu perguntaste-me de imediato se isso era pergunta que se fizesse a um amigo. Deixaste-me sem palavras, como sempre. Na vespera tinha-te procurado. Uma coisa ridicula assim como não morrer sem te dar um ultimo abraço. Dentro de uma história, só que não era a minha.


Comecei sem querer. Começamos sempre sem querer e depois falta-nos a coragem para acabar. Com o escrever, quero dizer. Porque uma palavra pede outra palavra, uma frase outra frase, uma mal-entendido um mal-entendido ainda maior. Uma história não tem de começar por aqui, uma história pode começar por qualquer lado, uma história durante o fim. Começamos e depois já não sabemos parar ou não queremos, tanto faz. O que se faz pouco importa, o que importa é continuar, entrar por aqui sair por ali, não ficar a meio da história, repetias tu o que eu já sabia. Não vale a pena começar se não é para acabar. Não vamos começar o que não vamos continuar e depois não vamos terminar. O probelma, creio eu, é que não havendo um verdadeiro começo não há um verdadeiro fim, e portanto somos de qualquer forma imortais.


Agora queria sair desta confunsão, que são todas estas palavras juntas, e dedicar-me por exemplo à jardinagem, ou ao crochet, ou a culinaria, enfim, a qualquer coisa que se visse e prestasse alguma coisa e não para a literatura, para histórias. Isto não mo disseste tu directamente mas estava pressuposto no que me dizias quando me dizias que depois saberia o que era, o que seria. Como quem diz: Toma lá cuidado, vê lá onde te metes. Mas não dizias em quê, ou como, ou com quê, e agora é tarde para apurar se era isso que tu querias dizer quando me dizias que era um vicio, uma coisa que faz mal, que afasta a vida da vida e não ensina a viver nem a morrer. Porque se há uma distancia entre a vida e as palavras, essa distancia vais-se pouco a pouco dissolvendo com a morte, uma fina camada de morte espalhando-se por cima de todas as coisas, de ti proprio. No que escreve há já sempre um que está morto. E depois já não resta senão isso. Repito: não sei se era isto que tu me querias dizer e também nunca chegarei a saber por que já não estas cá, ou por perto. Porque as versoes das historias que são contadas sobre ti, umas não vão com outras. Uma diz que partiste, outra diz que ficaste. Não se percebe nada, ou pelo menos eu não percebo nada, alias por não pretender saber nada de definitivo sobre ti mas sim continuar a confundir a verdade com a mentira, a mentira que nos livrava deste mundo quando escreviamos os dois sentados á mesma mesa na mesma maquina de escrever.


Escreve, escreve, habitua-te a sair deste mundo, vicia-te nisso, em não estares por aqui, que quando estiveres de voltar aqui, e há sempre mil e uma razoes para ter de voltar aqui, vais ver como é. Isto é o que eu digo a mim proprio, mas bem podia ser a minha mãe a dizer-me porque uma mãe quer sempre o melhor para os seus filhos. Ou então tu, que já não estas aqui para te perguntar, mas vives só em histórias que me vão contando, segredando sem eu perguntar nada, sem eu querer saber nada, como se eu pudesse ter inveja de ti, ou ciumes ou qualquer coisa do genero.


Portanto habituei-me a sair deste mundo vil para escrever histórias, sobretudo histórias de amor, que são as unicas histórias que valem a pena ou existem. E entre mim e o amor o abismo crecia, tinha por força de crescer tanto quanto a distância entre mim e a vida vivida. É numa dessas que estas tu. Mesmo em cheio. Coisa mais linda. Amor meu. Eu tranformado em historias, tu transformado em historias lindas de morrer, sobretudo isso, de morrer. A morrer, a morrer de cansaço, exautos, a morrer de viver. Mas enquanto no antigamente essa morte era só uma morte e depois outra, agora são muita, demasiadas mortes, demasiadas histórias. E acontecem coisas a mais, não param de acontecer coisas enquanto antes não acontecia nada, ou quase nada e por isso tinhamos de inventar tudo, imaginar tudo, ou pelo menos alguma coisa, para escrevermos juntos uma história de amor.


Vais ver que ainda te arrependes. Isto ninguem mo disse, quando comecei a escrever. Antes pelo o contrario. Embora tu me mostrasses alguns sinais de morte quando te conheci, logo no primeiro dia em que fomos beber. Encontramo-nos desde o primeiro dia entre o imperativo de criar, qualquer coisa que fosse, e a impossiblidade de criar o que quer que seja. Foi aí que nos encontramos pela primeira vez e daí nunca mais saimos. Até hoje, sim, hoje, apesar de não nos vermos há anos e da ultima vez que falamos pelo telefone sabermos que era a ultima vez, embora nos mentissemos tanto quanto as circuntancias o permitiam trocando numeros de telefone, endereço electronicos, apartados abandonados nos correios. Não estou para mais ninguem senão para ti, ouviste.

E se alguem julgar que não posso acabar com isto engana-se muito, porque eu não pretendo morrer. Portanto vou parar de escrever. O amor, é verdade, já tinha acabado quando nos encontramos no principio, pela primeira vez, agora me lembro. Alias a primeira história que escrevemos os dois tinha precisamente como titulo: O Ultimo Amor. Mas agora, repito, chega de histórias e mais histórias que nunca acabam e não levam a lugar algum, antes pelo contrario, fazem-nos sentir mais perdidos, mais confusos.

Mas não se morre assim tão facilmente. Por mim não vou ao enterro de ninguem. Só que para isso tenho de ser o primeiro a ir-me daqui para melhor, como se diz, e, como já disse, não pretendo morrer, quero continuar aqui como jardineiro, ou o que quer que seja, tanto faz. Portanto, há aqui uma contradição irresoluvel. Mas com essas posso eu bem. Com o que eu não posso é com mais histórias que cansam a cabeça e fazem mal ao coração e me obrigação a tomar cada vez mais comprimidos. Comprimidos para adormecer. Comprimidos para acordar. Comprimidos para continuar. Alias, lembro-me agora, tu tinhas uma piada engraçada sobre comprimidos. Dizias que tinham de se tomar sempre aos pares porque nem os comprimidos gostam de estar sozinhos. Quanto mais nós, é claro, e o que escrever faz é aumentar a solidão em que se está. Não faz mais nada senão acumular solidão sobre solidão.

E isto não é uma história, embora pudesse ser uma história e até pudesse ter sua graça. Já reparaste na facilidade com que dizemos que linda história, quando na verdade era uma história medronha, dizias-me tu e tinhas toda a razão. Alias, tu tinhas sempre razão em tudo e eu razão em nada. O que pensaei foi: acabe-se de uma vez por todas com a literatura e com a poesia e viva-se esta vida linda onde vive a minha Solidão. Do que ela gostou não sei do que foi, nem to digo, nem tu me ouves, mas pode ter sido do meu queixar, da maneira de como eu me queixava, quero dizer, dos meus gemidos. Portanto, e para não criar mais qualquer confusão, é preciso que saibas que abandonei definitivamente as minhas ambiçoes literarias, que nunca foram muito elevadas e passei a desejar viver como os mortais. Nisto a solidão ajudou-me muito. No hospital não havia senão a solidão e a Solidão não vinha a todas as horas como eu desejava. Fico contente com esta verdade, se for verdadeira e não fizer parte de nenhuma das tuas historias nem da absurda sabedoria da minha mãe. Fico contente, dizia, porque tem a ver com a imortalidade da alma que já referi. Alias, foi sobre isto que escrevi. Mas não foi por isso, insisto, que ele passou a gostar de mim, porque na verdade nos queremos que gostem de nos pelo que somos e não pelo o que escrevemos.

No principio até parece brincadeira mas depois é um susto valente quando começas a perceber que gostam de ti não pelo que és mas sim pelo que escreves. E tu só a escreveres mentiras que querem passar por verdades e verdades que querem passar por pura imaginação. Disto ,não me avisaste, ou pelo nemos não me lembro de me avisares, e também não te vou telefonar a perguntar porque não tenho a menor intenção de voltar a falar contigo seja sbre que assunto for, menos ainda sobre a imortalidade da alma. A nossa história está mais do que encerrada, como se diz e com toda a razão. Quando escreves começas a afastar-te da vida para poderes descrever parcialmente e a morte vai preenchendo todo o espaço vago até acabar por ocupar todo o espaço. E tu ajudaste-me nisso, ensinaste-me a escrever, mãe. Nos intervalos do que quer que fosse repetiamos os verbos em forma tão complexa que nunca surgiram na vida nem houve necessidade que aparecessem.

Portanto, quem tem culpa disto tudo és tu, minha mãe. Foste tu, minha mãe, que me trouxeste para aqui, um lugar sem saida, uma eternidade de tempo, um tédio de morte. Quem tem culpa és tu e depois sou eu que não tive cuidado nenhum e me deixei, como se diz, embalar pelas palavras e escrevi um história e depois outra e outra até ao bilhetinho. Mas não foi por isso que ele gostou de mim, foi sim pela minha coragem, pelo meu estoicismo. Solidão, Solidão como eu te desejei sem saber quem eras, sem querer saber, tudo menos a verdade, tudo salvo a mentira, tudo menos a poesia ou então nada. Sim, o melhor é nada. É essa a minha decisão, mais nada. Parar de escrever. Antes que seja tarde. Acabar com estas infinitas hitórias que não levam a lado nenhum, nem salvam almas sequer.

Esta decisão, a decisão de parar de escrever, apazigua-me. Não sei porque, nem me interessa agora saber porque, mas apazigua-me. Porque ainda corro o risco de voltar ao vicio, qualquer corre esse risco, qualquer mortal. Porque em parte vivemos disso, de histórias que qualquer um conta ou contou e outro decorou ou repetiu ou, pior ainda, escreveu. E não há maneira de ter a certeza de que não se volta ao principio que continua sem fim e tudo leva consigo. Mas a minha decisão é unica e final: Não vou voltar a escrever uma história que seja. Só de ter tomado está decisão já sinto melhoras, ou pelo menos julgo que as sinto, o que é a mesma coisa e já uma coisa boa que alivia deste desassossego em que esteve a minha vida. No meu fim está o meu começo. Não pode ser de outra maneira. Para começar tive de acabar contigo. Estranhos dias."

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